Você sabe como nasce uma flor?

Primavera. As abelhas estão sumindo. No quintal da minha tia avó eu ouvia, quase que diariamente, que o cântico que ardia lá fora era do beija-flor da árvore, que ia até ali tomar a água. Ela deixava água, potes de água, pendurados na árvore velha, para assim atrair o cântico, toda santa tarde. Um ritual. A árvore era cheia de flores vermelhas que se proliferavam, e àquela altura eu já queria saber de onde vinham. “As abelhas, meu bem”, me diziam. Quais abelhas? Eu nunca via as abelhas fazendo o trabalho delas, eu não via o pólen sair dali e vir para cá, nem o via fazer o caminho de volta nas patinhas do inseto. Então, posso dizer que essa coisa de acreditar no nascimento de flores é antes uma fé do que qualquer coisa. Você acredita, mas não necessariamente vê.
Verão. As abelhas estão sumindo e isso é de certo modo alarmante. Como é depender de outro ser vivo para ter o trabalho feito, às expectativas correspondidas ou a perpetuação de sua própria existência? As flores estão sujeitas a um destino fadado, tente imaginar uma vida sem flores. O jardim de Versalhes e tantos outros suntuosos vão virar balela, as mesas de casamento e da formatura não terão cores ou beleza, os mocinhos apaixonados vão ser obrigados a enviar chocolate em um mundo onde a intolerância à lactose está perpetuada, o ar vai ficar mais raro, perfume mais raro, beleza-de-todo-dia mais rara.
Os professores de português terão de reinventar metáforas, não ouse a comparar indiretamente ou diretamente ninguém ou nada a uma flor. O que são flores?
O vento de fim de tarde sopra forte, inimaginavelmente forte. O calor faz o drama do meu pensamento corroer o corpo encharcado.
Outono, e o vento mantém firme. Quem precisa das abelhas se esse ventão todo pode espalhar brisa e pólen aos quatro cantos? Mentira, essa ideia das abelhas sumirem ainda é decepcionante, mas acontece que os fatos são esses: o pólen precisa ir e precisa cair naquele lugar específico. Oitenta e cinco por cento das abelhas são solitárias, elas tem uma missão de vida. Cem por cento dos seres humanos são solitários. Como as abelhas solitárias. Eles tem uma missão na vida, um pólen a ser entregue, com cada grão inserido no caos. Não existe tempo certo, e eles não sabem disso porque pensam estar em uma colmeia. Talvez por isso eu vejo tantos seres humanos e tão poucas abelhas.
Inverno. Vá lá, sente na frente da lareira, se pergunte onde estão as flores para eu te dizer que nem tudo são flores. Quase não tem vento e não vejo abelhas, o clima não está propício para isso, e sabe de uma coisa? Tem dias que o clima não está propício a nada. Tem dias que temos que agarrar a corda, fechar os olhos e dizer, é isso aí, camarada, exerça sua resiliência. Às vezes a paciência é a única coisa que você pode fazer sobre as coisas estarem como estão, não existe outra saída senão esperar. E quando você espera, enquanto espera, estará exercendo uma decisão sábia ao reconhecer que, no momento, não consegue tomar decisão alguma. Então, a ordem dos fatores não altera nada, a menos que você coloque os fatores em ordem e espere em conforto, de preferência com vinho e chocolate. Sem flores, sem abelhas, a vida anda.
Primavera. E elas estão aqui de novo, sorrindo para o vento. Ainda não vi abelhas, ainda não vi o pólen e talvez o sinta nos meus espirros, mas os jardins estão bonitos. A pensar, qual a chance de o pólen cair no lugar certo? Qual é a chance de existir um negócio chamado po-li-ni-za-ção, polinização, gente, como isso é possível, como nasce uma flor?
Se uma flor nasce do mais improvável, de abelhas oitenta e cinco por cento solitárias, quais são as chances de seres humanos renascerem com ajuda de outros seres humanos, cem por cento solitários?
As abelhas estão sumindo, e isso é alarmante. As abelhas estão sumindo, e isso é decepcionante. As abelhas estão sumindo, existem dias sem vento, e as flores continuam a nascer, ano após ano. Então não suma. Feliz Ano Novo.

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