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Tempo vendido

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Assisti há alguns meses o filme “O preço da amanhã”. O filme já é velho, de 2011, mas vou dar um resumo breve para situar a quem ainda não viu. Trata-se de uma época futura na qual a ciência descobriu uma forma para que as pessoas parem de envelhecer aos 25 anos, e, a partir de então, trabalham e lutam para conseguir, possivelmente, um merecido tempo de vida. Os ricos têm muito tempo, os pobres quase nada, os ricos tiram dos pobres, ou seja, pode-se dizer que na ficção o tempo é tido como moeda de troca. Lembrei desse filme hoje, enquanto comia minha salada. Pedi salada, frango desfiado, purê de batata doce e suco de melão. Me orgulhei de ter optado por algo saudável, e pensei comigo, ainda bem que inventaram esses serviços delivery fitness, o que seria de mim? Não teria tempo de preparar uma refeição dessas, imagina, seria o tempo de desfiar o frango. Pois bem, o insight veio: comprei meu tempo.
Vende-se muito, mas muito do que se vende é exatamente isso: tempo. Me vi assustada com o fuá da nossa estrutura social. Como fora, não tenho tempo de ir ao mercado, de preparar a comida ou lavar louça. Estou sem tempo, não rola de limpar a casa, vou chamar a faxineira. Não há tempo de ir ao banco, de lavar a roupa, tirar o lixo, fazer compras, levar os filhos para a escola, trocar uma lâmpada, pedir o gás, comprar um filtro novo, passear com o cachorro, levar o sapato para arrumar. E então, o que fazemos em relação a todas essas coisas as quais seríamos bem capazes de fazer? Pagamos a quem o faça. Compramos o tempo de alguém, geralmente por pouco, muito pouco. E então, enquanto você curte a vida na Polinésia Francesa ou simplesmente trabalhando com o que gosta, tem alguém deixando a vida passar por uma gorjeta qualquer e fazendo o que você chama de serviço sujo.
Foi ignorante da minha parte não ter notado, a príncipio, a essência de uma ficção a qual julguei simplesmente como um romance bobo, porque esse não é um futuro longíquo: nós vivemos na era em que o tempo virou produto e também moeda. Muitas pessoas vivem da venda do seu próprio tempo, o que é triste. Sim, elas precisam disso para sobreviver, precisam desse dinheiro e desse trabalho, mas ao fim de tudo, é isso mesmo? Será que elas realmente gostam disso ou é apenas questão de necessidade? É um tempo perdido ou um tempo vendido? Tempo vendido é a mesma coisa que tempo perdido? Depende.
A história vai além. Ainda existem as opções gourmetizadas das coisas. Paga-se para comer em um restaurante por prazer, para ir em um museu, para aprender um novo idioma. Paga-se pelos bons tempos e para quem viva por você os tempos ruins. Que tipo de pessoas viramos então? Semi-pessoas, pessoas divididas ao meio, jogamos a outra metade fora. Nos tornamos o tipo de ser humano que despreza o prazer pela vida e eleva padrões que não devem ser elevados: levar seus filhos para a escola não é, de forma alguma, menos importante do que levá-los ao melhor lugar do espetáculo de ballet na temporada Russa. Pelo contrário. Você vai criar pessoas melhores se estiver lá, esperando o portão abrir e mostrando que faz questão da sua educação e dos seus problemas cotidianos, afinal, os filhos também precisam saber que você se importa. Aliás, eles precisam ter certeza disso. Você só vai ter uma casa menos empoeirada quando realmente aprender a limpar, e ninguém vai explicar ao sapateiro como você quer, exatamente, o verniz retocado. Ninguém vai viver a sua vida por você como você mesmo faria, e sabe porquê? Porque estão todos preocupados com suas próprias vidas e com seu próprio tempo perdido/vendido.
Então, trabalhe, e em algum momento você vai mesmo precisar comprar seu tempo e também vendê-lo. Mas venda fazendo aquilo que goste, e compre quando realmente julgar necessário. Abrace seus filhos, ensine alguém a andar de bicicleta, encontre sua irmã para um café, prepare seu próprio café, vá ao mercado, leve seu primo ao parque do prédio, tome conta do seu avô. Porque nessa de vender e comprar, tem sempre vida se perdendo, e guarde esse segredo: ela é sua e ela passa.

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Quando você me perdeu

Eu fechei os olhos e desejei estar em uma varanda de qualquer ruela em Viena, observando o papo furado dos turistas logo embaixo. Eles falariam sobre o Danúbio, Mozart, ópera. É o que sempre falam. Mas eu não estava lá, eu só me imprimia por dentro, vãs tentativas de não compreensão. Eu estava sentada na minha cama, cobrindo meus olhos, que estavam molhados, mas eu não chorava. Era só aquele tipo de notícia que você constata, e é dura, mas de tão dura que é te faz encará-la na hora, na vida, no chão, como for, e numa dessas eu fechei os olhos em uma tentativa desesperada de não enxergar. Mas meu amor, era a hora. Eu queria o frio, e o clima estava ameno. Eu queria você, mas foi naquele fatídico dia, e não teve escape, desculpa ou o menor jeito. E então, você me perdeu, não foi?
No dia em que você me perdeu, era clima de uma estação. Minha pele não sentia nada específico, porém. Eu acordei indiferente, e isso não é bom, porque em alguns momentos da vida já aprendi que a gente precisa sentir o tempo todo, amor, amizade, ódio, fúria, calor, frio, o que seja. Mas eu não sentia, e então liguei para uma amiga, na incapacidade de sentir, sofra, ela me disse. Eu precisei de você, assim como preciso em vários momentos do dia. Eu precisava contar qualquer coisa banal, precisava de você no sofá, no quarto ao lado, contando uma piada ridícula ou me consolando com uma conversa boa sobre um dia ruim, mas você não estava lá.
O dia quando você me perdeu, tocava The Beatles na 100,3 FM, eu abri a janela do carro para respirar melhor, reclamava dessa falta de ar subjetiva há algum tempo. Eu fui trabalhar, comi um pão na chapa, e na ansiedade de qualquer vazio que viria no momento seguinte, tomei ao menos quatro copos de café sem açúcar. Sentei em várias cadeiras, e sentia que iria quebrar todas elas, com o peso que carregava.
Eu passei aquele dia inteiro relutando contra forças internas que eu nem ao menos sabia que conhecia. Eu me distraí com qualquer primavera da rua, e também tentei sorrir, sem êxito, sem rir, nem chorar, nem sofrer, nem sentir. O dia em que você me perdeu, ventou. Ventava bastante, e de noitinha fui fazer uma caminhada, eu te disse, não? Mas sua resposta eram apenas palavras, e suas preocupações sempre foram para dentro, nunca para fora. Naquele dia, suas palavras passaram a ser para dentro, também. Era tudo para dentro, toda decisão sobre você, lembra?
No dia em que você me perdeu, o vento, a exaustão, o corte que fiz no meu dedo cortando batata no almoço, não me fizeram sentir. O sereno não me comoveu, não existia sofrimento, eram boas lembranças e muito vazio. E meu amor, como estivemos vazios, não foi? Como nos faltaram palavras, músicas, danças, filmes, mãos. Como nos escapou a vida no meio de tanto sentimento? De repente os carros passavam e estavam parados, pessoas falavam caladas, olhares suplicavam indiferentes. O fatídico dia em que você me perdeu, eu já não sabia se o porto seguro que tive para mim, de fato, um dia existira.
O dia quando me perdeu, você ameaçou falar, eu fiz que falaria, mas ninguém falou, e por palavras mal ditas e não ditas eu estive lá, na minha cama, lembrando da voz que sempre me diz a hora de ir embora. Eu tapei os olhos e me recusei a ver. Eu te odiei por ter feito isso com a gente, eu te odiei por me fazer sentir isso de querer te deixar, eu te odiei várias vezes por abrir essa maldita mão e ter deixado eu escorrer pelos seus dedos. Eu gritei que fechasse, eu te pedi que me abraçasse e me livrasse da queda livre. Mas se aproximava a hora de ir embora, que independe de exaustões particulares e peculiares. Quando a gente se incapacita de ir, a vida empurra. Não guarde mágoas, não me empurraram. Ouvi o conselho da minha amiga, e, no dia em que você me perdeu eu sofri. Sofri por te odiar e mais ainda por me odiar, por te deixar, por te abandonar, por não dar sinais, palavras, ou o que você queria de mim. Eu sofri quando olhei para o vazio que fitava enquanto me dei conta: você me perdeu. Eu chorava enquanto repetia para mim, você me perdeu. E pela primeira vez no dia, eu senti alguma coisa, eu senti forte e dentro.
Eu aprendi. Aprendi que seja lá o que aconteça com a gente, independentemente de quem estiver ao nosso lado, é necessário sentir, todos os dias e o tempo todo, como se tivesse um gatilho armado em direção a você, te obrigando sentir uma vida inteira por todo o segundo seguinte. Não adianta sentir fraco, com medo, acuado. De nada serve sentir só para dentro, a gente precisa emanar sentimento. Então, veja bem, sinta, mas não seja egoísta, no que puder, sinta junto.
Era um clima ameno e você me perdeu. Mas nessa de me perder, quem me achou fui eu.

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O coração fica

Vou propor uma experiência: entrelace suas mãos. Agora aperte firme, e as deixe assim, por um momento, abraçadas. Fique assim por alguns minutos e, enquanto isso, vamos conversar. Eu sei que você nunca mais vai ver o Manoel, que a Pri está na China sem data para voltar. Eu sei que você acredita piamente que aquela pessoa foi o amor da sua vida, e esse mesmo amor se esvaiu. Também sei que você se culpa por isso, pelo que pode ter sido e não foi; você culpa seu orgulho, e também o fato de não ter escancarado seu peito e falado tudo que gostaria de ter dito.
Eu sei que o mundo grita aos sete ventos para você falar o que sente, que isso alivia a alma, e mesmo assim você não consegue ver o fim da boiada dessa linha de raciocínio. E então você se sente um perdedor solitário e orgulhoso, e fica aí pensando no que deveria ter sido, depois de se sentir abandonado pelo mundo. Eu sei que você sente que a vida esqueceu de você em prol de protagonistas os quais você nem conhece, e também já sei que você grita com ela às vezes, se perguntando porquê. Porque, Deus?
Porque você acreditou de novo, se deixou levar, quebrou a cara? Porque confiar, se abrir, ajudar, dar o melhor de si? Vamos, lembre das mãos, aperte mais um pouco.
As pessoas vão embora, elas precisam ir embora, todo mundo precisa. Você vai se abrir sem ser correspondido, você vai acreditar que achou alguém que não vai te abandonar e ainda assim ser abandonado. Às vezes as pessoas escolhem ir, outras vezes a vida leva. Há ainda os momentos em que a vida opta por nos levar das pessoas, e nada explica isso. Nós temos planos maiores, e tudo tem sua história natural.
Então, o que te resta é entender que o amor acaba, amizades terminam, pessoas vão, voltam, ficam e se vão de novo. Você vai se sentir abandonado a ponto de se enterrar na cama e ouvir a playlist mais fossa do mundo, e vão haver dias piores. E então, aperte mais um pouco as mãos.
Você vai ser ignorado, vai se sentir pisado. Em alguns momentos as coisas vão dar errado, e depois certo, e depois errado. Você vai botar mais fé nas coisas do que deveria. Vai engordar e vai emagrecer. Vai ter momentos de bem com seu cabelo e em certas horas vai querer raspá-lo. Você vai para Paris e esquecer de fazer alguma coisa que queria ter feito.
Um dia vai achar lindo as formigas juntinhas andando a Deus dará, e no dia seguinte vai odiar uma formiga pelo vergão na perna. Você vai amar a vida e também vai praguejá-la. Vai cantar sua música favorita até arranjar uma nova, porque a antiga não cabe mais, nem faz mais sentido.
Você vai dormir e vai acordar. Já sente suas mãos formigando? Já parou de senti-las? Então solte. Sinta como elas estão travadas, como elas travaram enquanto estavam juntas. Agora sinta como a circulação se recupera quando se soltam. Comece a sentir novamente, chega a doer essa recuperação, não? Mas ela volta, tá? Assim como a gente, ela volta a sentir, a mexer, a te ajudar a viver. Você não vai perder a mão, nem o braço, nem mais nada, assim que se lembrar: as coisas precisam se desprender para chegar a certos pontos.
Assim como quando você largou as mãos, as pessoas precisam viver outras coisas, elas se vão, se desprendem. Dói, dói um bocado, mas quando alguém te pedir liberdade, não hesite, deixe ir. Experimente a dor até parar de senti-la, a dor é necessária, bem como o amor. Grandes amores só são inesquecíveis quando não totalmente vividos e esgotados. Pois bem, deixe ir e vá também, você precisa se encontrar. Sua mão vai ficar bem, e você também.
Seu coração um dia vai parar de bater mas, por agora, ainda bate. Então faça jus a cada batimento, enquanto não falta nenhuma parte de você aí dentro.

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Entre a imitação e o Agnóstico

JOGOIMIT

Fui ontem assistir ao múltiplo indicado ao Oscar “O jogo da Imitação”. Dentre o roteiro sedutor, 2ª Guerra, Criptografia, Aliados, e uma super máquina alemã de transmissão de dados criptografados, o protagonista se destaca por sua personalidade peculiar, como a de todo gênio que se preste, e sua genialidade em desenvolver uma máquina tão ou mais capaz que a alemã. A essência dessa história baseada em fatos reais é maravilhosa, mas um ponto em especifico me chamou a atenção.
Alan Turing, em um dado momento, é tido como pacifista universitário, tendo sua capacidade de lidar com a Guerra subestimada, apesar de ser o melhor matemático da época. A essa insinuação respondeu: Não era contra a violência, era um Agnóstico da violência. De fato, constatação brilhante. Em certo ponto do filme, Turing é obrigado a esconder as informações que duramente conseguiu interceptar do exército alemão para que esse não suspeitasse de que as tinha e mudassem os códigos de criptografia. Essa atitude levaria ao afundamento de um navio de carga da Inglaterra e, consequentemente, a morte de muitas pessoas. Sua decisão, porém, foi esconder o fato de que as tropas alemãs iriam se aproximar e, assim, impedir a defesa Inglesa. A justificativa foi que a morte daquelas pessoas era necessária para vencer a guerra e salvar tantas outras vidas a mais.
Decisão difícil, não? Tipo de decisões que tomamos todos os dias, não da mesma magnitude mas nas pequenas coisas. Hoje percebo que não sou contra mentirosos, sou agnóstica da mentira. Quem nunca contou a tal mentira do bem? Quem não tentou poupar o outro? Não sou contra o ódio, sou agnóstica a ele. O ódio às vezes cresce para nos proteger. Não sou contra a trapaça, sou agnóstica a ela. Trapaça às vezes salva vidas. Não sou contra paixões vazias, amizades superficiais e sorrisos falsos. Sou agnóstica a isso tudo. Por mais vazias que sejam, preenchem em dado momento qualquer espaço provisório e paliativo, que estava realmente precisando daquilo.
Não sou contra esmolas, não sou contra discussões, brigas, refrigerante, drogas, manifestações violentas, vidas vazias, espaços em branco e canetas sem tinta.
Bom, não é segredo para ninguém que a Inglaterra ganhou a guerra. Turing se tornou uma das maiores mentes de guerra da história. E eu? Descobri dentro de mim uma agnóstica nata.

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Sobre os outros

Não me surpreendi quando saiu a lista dos indicados ao Oscar desse ano, principalmente ao ver as tantas indicações de O Grande Hotel Budapeste. A primeira vez que tive conhecimento desse filme foi por uma sinopse e um cartaz que me atraíram por um minimalismo bonito, sutil e sugestivo. A vida vive ensinando que o minimalismo ressalta as coisas, não é? Assim que tive a oportunidade, assisti, e não me decepcionei. Todo o cenário que Wes Anderson armou volta para uma atenção maior a um roteiro aparentemente simples, mas que trás consigo uma história intrigante e, como não poderia deixar de ser, lições de vida.
O filme se passa em 1932, e entre cenas hilárias, dramáticas, roubos, conflitos de inocência e paradigmas de certo e errado destaca-se um tema que, ao meu ver, é cada vez mais colocado em xeque: fidelidade. Gustave é gerente máximo do Hotel, e demanda um treinamento intensivo a Zero, seu fiel aprendiz. Não faltam desqualificações pessoais para o gerente: mulherengo nato, competitivo, por vezes egoísta e ambicioso. Zero, por outro lado, é capaz de olhar para o mestre e captar sua melhor parte, sempre, a ponto de lhe prestar uma fidelidade a qual está em falta no mundo. Essa é a parte comovente.
Obviamente o conjunto atingiu um esplendor remoto. Acontece que me fez pensar. Em um mundo ligado no sim e no não, no certo e errado, entre extremos bem distantes e opiniões duras somadas a julgamentos extremos, tornamo-nos incapazes de ver o lado bom das coisas. Fulano errou, fulano acabou. O rapaz é visto como mal caráter e desprovido de alma ou sentimentos. Pergunte se alguém se coloca no lugar do fulano? Não. As pessoas se tornam cada vez mais descartáveis por não serem perfeitas de bondade, e eu pergunto, quem é? Será que olhamos para o próprio umbigo e enxergamos nosso lado ruim? O lado que sente inveja, o lado fútil, egoísta? Não esconda ele não, eu sei que existe. Todos sabemos, mas ignoramos, julgamos, ignoramos, em qualquer ordem que seja, para qualquer ciclo vazio.
As pessoas carregam cada vez mais traumas de pessoas ruins e apagam de si as lembranças boas e aprendizados que levaram dessas mesmas pessoas. Todo mundo tem algo a oferecer e a ensinar.
Desculpe o spoiler, mas Zero acaba feliz. Ele não se torna um mulherengo, ele não é um ambicioso dos mais egoístas, ele é um dos personagens mais puros de espírito que já vi no cinema. Nada parecido com Gustave, certo? Mas ainda assim levou o tudo de bom que foi capaz de reconhecer no chefe, fez dele seu mestre e daí partiu sua própria vida. Quando não ter o que criticar, olhe para frente. Antes de julgar, reconheça o que te desperta aquele mesmo lado ruim. Na falta do que aprender, aprenda o outro.

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Tempestade

frida

Maria Adelaide Amaral disse sobre o relacionamento de Frida Kahlo e Diego Rivera: “tempestade”. Não sei vocês, mas eu de certo modo invejo o humor tempestivo desse amor. Ambos tinham personalidade forte, bem sabido, embora em diferentes sentidos. Não vejo nada melhor que um amor tempestade. Amor morno não aquece, não esfria, não sacode. O que não é tempestade é chuvinha, não faz sentir. Enquanto chuvisca lá fora, tudo que se quer é cobertor e sono. É calmo demais, é sozinho demais, é curtir uma descoberta própria, exclusiva e interna. O amor morno é um tanto egoísta, se leva de mão dadas, supre aquela felicidade à qual se chega, não exatamente a que se almeja. Amor morno todo mundo acha lindo, todo mundo quer paz depois da desilusão. É amor amigo. Ele é um amor seguro, monótono, tedioso, mas como todo amor, é válido.
Já o Amor tempestade é aquele em que se deseja ficar em casa, com cobertor, pipoca doce, filme e alguém do lado. Aquele, justamente aquele. É amor que briga, fecha a porta dizendo adeus, vai para o bar, toma um porre e volta arrependido. Não é amor fácil, é amor de quem tem peito e personalidade. Mas também não é amor fraco, é difícil de tirar de dentro. Do amor tempestade não se tem controle de nenhuma parte, mas ele sempre volta. A gente acha que ele atormenta, mas você sempre gosta de como ele sacode: o coração, a vida, os passos dados juntos, mesmo que sejam passos inseguros e esporádicos. Amor tempestade solta raio, trovão, faz seu coração galopar só de chegar perto. Ele não te puxa pela mão, e sim pelo abraço. Ele não poupa gritos, em nenhum sentido, ele é vivido em dois e por dois. Ele é expansivo, e libertário: vai, mas volta. Erra, mas ama. Você nunca sabe o que vem a seguir, e é o que passa a dar certo sentido àquela felicidade que não se sabe bem como chegou, mas está ali, está aí. Amor que todo mundo acha inconveniente, mas não tem conveniência maior. É amor primeiro amigo, mas depois amante. Amor tempestade não importa se tem vinho, fanta uva, água com gás ou o que for na geladeira. Ele te faz, te completa, e no fim do dia pode-se morrer em paz.
Eu invejo Frida e Rivera porque, apesar de amar um chuvisco, nada me realiza mais do que me molhar na tempestade. Mas é inveja boa, tá?

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Aquela sua parte que ama

Assisti ao filme “Her”, traduzido para o português como “Ela”, no último fim de semana. O filme basicamente se passa entre um protagonista e dois amores, sendo um deles um amor real e outro virtual. Foi assim que eu encarei a situação até os primórdios de final. Se você ainda não viu o filme e não quer spoilers, pare por aqui. O protagonista Theodore tem dificuldade de se desapegar da ex esposa, tem sonhos e lembranças constantes dos momentos bons do antigo casamento e lida com os obstáculos de se envolver com outra pessoa. Acho que disso temos todos um pouco, o medo de se envolver de novo, a preguiça de começar do zero, de um tira e coloca daquelas máscaras inúteis que todos nós usamos e não sabemos ao certo de onde tiramos e quando perdemos. Pior que isso, o medo de gostar, e quando se gosta, o medo de perder, e se não perde, o medo de ficar inseguro. Amar é tão difícil e tão incrivelmente proveitoso e intenso em todas as partes do processo, não é? Mas Theodore não esperava encontrar seu novo amor em um sistema operacional moderno e sentimentalmente tão ou mais capaz que um ser humano. Samantha, o tal sistema operacional, não só sentia como sentia muito. Era capaz de sentir amor e paixão por vários usuários ao mesmo tempo, de expandir seu conhecimento e seu amor em progressão geométrica e demonstrar  uma nobilidade e gentileza de sentimentos que não vemos nos seres humanos. Nós somos egoístas. A construção de nossa segurança em um relacionamento se baseia na exclusividade do sentimento: você só se sente seguro entre quatro paredes de um único coração no qual só cabe você. Inconscientemente compete com amores presentes e passados, sejam eles quais for, compete com a mãe, o pai, o amigo, o ex. E daí se o pobre coitado ainda ama as lembranças do ex? Porque nos tornamos e, principalmente, nos vetamos tão intensamente em expandir e acrescentar amores em nossa vida? Porque todo ex tem que ser, obrigatoriamente, um sinônimo invariável de mágoa e assunto proibido?
O filme me agradou tanto por que ao fim dele (e eu não vou contar o fim), Samantha ama a tantos, e Theodore a outros tantos. Acima disso, cada um preserva o amor pelo o outro e antes desse, o amor por eles mesmos. As lembranças de Theodore em relação a Samantha, que não era bem uma pessoa, eram lembranças dele. De como ele era feliz com ela, de como esse amor o deixava livre para ser quem ele quisesse perante os olhos de qualquer um. Com ela, ele não se sentia julgado, pelo contrário: ele estava livre de outro corpo que eventualmente o aprisionaria. E de volta, por mais que quisesse, ele não podia aprisioná-la. Eram dois livres se amando. Então tive um insight: Mais do que amar Samantha, Theodore amava o seu eu enquanto a amava. Amou o quanto ele dançava, o quanto rodopiava, ria, se divertia e a divertia. E esse amor é saudável, e dele provém a segurança. Esse tipo de amor livre reduz qualquer medo de perda, e dismistifica a velha história de que o medo de perder faz perder. De fato o faz, mas e se não existir medo?
Em resumo, o amor só é amor quando te faz ser aos seus olhos uma pessoa melhor. Você gosta mais de você desse jeito, é uma imagem melhor de si. O amor só é amor quando você consegue ser exatamente aquilo que te faz olhar no espelho e se agradar do que é. Amor é amor quando você aprende a amar a você a ao outro, e justamente por isso sabe que se perder ao outro, eventualmente, uma das partes nunca vai sair dali, porque está em você, faz parte do combo. O amor é genuíno, entra devagar, não faz barulho, nem alarde. Ele dança no ritmo, ele é leve, não é para ser difícil, é tão espontâneo. Quando se ama de verdade, livre, se ama certo. E o jeito certo de amar é amando a todos, porque amor que é amor não vive entre quatro paredes e nem se divide em dois corações: ele se expande e te torna sempre alguém melhor. Essa é a parte que não se perde, e essa é a lembrança que deve ser perpetuada. A cada novo amor acrescente a você novas facetas que te fazem amar mais. Terminou o namoro? Não mate os restos de ex que tem em você, também são partes suas. Deixe aí, acrescente o que te faz bem. Quem você se tornou amando? já sabe? Então agarre, não foge. Essa parte não se perde, essa aí para sempre se ama e será para sempre sua, seu medroso.

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Divã com Sertalina

Ontem fui assistir ao filme “Boa Sorte”, com a Deborah Secco. Filme lindo, impecável, me fez chorar (como se fosse algo difícil no meu caso). Achei que o filme retrata, de forma verídica e dócil (duas características complicadas de serem colocadas lado a lado) a realidade da saúde mental no país. Bom, em resumo, trata-se de reabilitação, dois protagonistas, AIDS e muitos vícios. Coincidentemente, li uma matéria em que o Allen Frances, quem coordenou por alguns anos o DMV (manual diagnóstico e estatístico, por muitos considerado a Bíblia da Psiquiatria), revela que problemas cotidianos estão sendo transformados em doenças mentais. No “Boa Sorte”, a personagem da Deborah Secco, Judith, diz que você não é considerado louco quando paga suas contas e limpa sua sujeira. Coloco isso em pauta com a revelação de Frances: somos todos pacientes psiquiátricos? Até que ponto a sociedade tolera os níveis de loucura? O que é loucura, afinal? Quando estava no colégio, algum professor me disse que loucura era uma definição do que se caminhava para um local distante do considerado normal. Ainda me questionou, o que seria normal? Até hoje não sei, não me considero normal para tecer definições. Não considero ninguém normal, todos somos diferentes. Normal, para mim, é monótono. Mas não posso e nem devo ignorar que vivemos hoje em uma sociedade débil, em que o sentir deve ser cada vez mais reprimido. A gente pensa, sim, somos pensantes. Mas também um sábio professor me ensinou que devemos pensar muito, e não demais. Você tem um milhão de coisas para fazer, todas complexas, e não consegue sair do lugar. A ansiedade te toma, não sabe por onde começar, é muita coisa e então faz o que melhor sabe fazer: dorme. Aliás, faz o que a gente faz de melhor: foge. Depois acorda com uma breve sensação de estabilidade que dá lugar a uma ansiedade ainda maior, por não ter feito nada. Em alguma parte do processo, recebe o diagnóstico de Transtorno de Ansiedade, e saí com uma receita negra: temos fluoxetina, sertralina, frontal, lexotan, lítio, tem para todo gosto. Uma amiga minha estava com esse problema. Me disse que pensou em começar a tomar antidepressivo para controlar a ansiedade. Eu disse a ela que se não soubesse por onde começar, começasse por qualquer lugar e fizesse o que vem em seguida. E então ela começou e percebeu que a ansiedade dela não era doença coisa nenhuma. Que mundo é esse em que depois da briga de família todo mundo toma monocordil, AAS e Diazepam? Onde ficou a água com açúcar? O chá de camomila?  Diante de uma insônia as pessoas não ligam mais a TV, pensam nos problemas e esperam o sono chegar…Não ligam para o amigo ou conversam com o marido. Não, o melhor amigo se chama Frontal, e é uma amizade unânime. A bebedeira não é mais de vinho barato, é de Somalium. Não se tolera o muito feliz, muito triste, muito choroso, meio para baixo. Dá-lhe remédio. Meus queridos, sintam! Sentir faz bem, e só sentindo que se vive e que se faz sentido viver. O remédio só deve ser usado para fazer sentir o que já não sente mais. Acredito no progresso da psiquiatria e admiro quantos estão sendo ajudados com isso. Mas também acho que precisamos modular a mão: Amigos, amigos, psiquiatras a parte. Antes de abrir a caixinha mágica e selecionar o próximo comprimido, selecione um bom número de telefone, um bom capuccino italiano e uma boa conversa. Comece falando, antes que qualquer Sertralina te encontre, trate de encontrar você mesmo. Seja um próton e continue positivo. No mais, nunca gostei de viver no meio de normais.

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Entre lugares e abraços

Qual é o seu lugar? Aquele ao qual você sempre pertenceu. Não importa o tempo que passa longe, é só pisar ali e você sabe que é seu, te inspira, te faz sentir e te faz viver. Vive-se melhor, respira-se melhor, não importa o quanto esteja poluído o ar. Decide-se melhor, lembra-se mais, produz mais, sente mais. Você é você, não há explicação. Podem te oferecer o melhor lugar do mundo, e você só quer o seu, naquele universo próprio em que você engole cada trecho de calçada e se apodera como ninguém da mixofilia. É simplesmente seu, naquele momento.
Qual é o seu abraço? Aquele ao qual você sempre pertenceu. Não importa o tempo que passa longe, é só estar ali e você sabe, é seu. Te inspira, te faz sentir, viver. Vive-se melhor ali, respira-se melhor, e chora-se melhor. Decide-se melhor, lembra-se mais, sente mais. De você eu me lembro mais. Você é você, não há explicação. Podem te oferecer qualquer outro abraço, e não há igual, você só quer aquele seu, naquele universo próprio em que você engole cada trecho de si e se apodera como ninguém do outro. É simplesmente seu, naquele momento.
Qual é o seu amor? Todo seu. E qualquer semelhança pode ser ou não uma coincidência. Tenha em mente que livres associações podem contemplar lugares e abraços, plenamente. É tudo o que não muda, o atemporal. Nada disso passa.

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Linha e agulha não Machadianas

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Estava eu com algumas roupas que precisavam ser ajustadas no guarda-roupas, havia algum tempo. Pois bem, sempre prometia que iria levar logo na costureira para usá-las assim que possível, até que no fim de semana resolvi que as coisas iam mal. Não organizava minhas roupas e sapatos há algum tempo. Nem meus livros. Nem as roupas de cama, todas descasadas. Isso me deu uma agonia horrível, de como se o resto da vida fosse desandar por esse motivo e então decidi: era a hora. Aquela hora que você coloca a casa para baixo, como se fosse fazer uma mudança. Não simplesmente guardar tudo aquilo que você não quer desapegar no armário do quarto de visitas. Não, não, não…o lema passou a ser desapego. Tudo que eu olhava e brevemente me desagradava ia para o saco de doações, inclusive muitas daquelas roupas folgadas, principalmente as que eu pensei que nunca usaria, mesmo após o conserto. Enfim, não posso dizer que tudo está a mil maravilhas. Acabei tudo isso com sacolas de papel infinitas (porque raios eu guardava tanta sacola?) no chão do closet, de modo que não consigo circular, mas ganhei algum espaço livre. Aliás, ganhei espaço livre em todos os compartimentos do móvel e o processo me renovou. Sério mesmo, recomendo. O caso é que ainda sobraram quatro regatas a serem ajustadas. Como eu me conheço e sei que vou passar longe da costureira, comprei linha, agulha e fui à luta. Há tanto tempo não dava um ponto que sinto até vergonha em mencionar. Mas a última vez me lembro de ajudar minha mãe a colocar a linha na agulha. Quando era criança me julgava numa habilidade enorme de enfiar a linha na agulha. Eu me gabava com todo mundo que tinha olho de cobra, colocava a linha na agulha como ninguém. Sinto informar que o tempo passou, e eu me vi penando, que agulha é essa? Eu era profissional nisso, não era? Como assim estou demorando tanto para colocar essa linha? Pode parecer idiota, mas isso me fez sentir algo que vivo sentindo. Será que regredi? Sabe, muitas vezes paro e penso em como tomava certas decisões mais seguras e firmadas na infância. Como era uma criança responsável, que não pisava na bola e, bem, sabia colocar a linha na agulha. Fui tomada por a sensação de regressão. Mas então eu lembrei que dia desses usei uma bota que não usava há tempos. Me perguntei porque passei tanto tempo sem usá-la, e a resposta veio quando cheguei ao trabalho. Tum, tum, tum. O salto era extremamente incomodativo. ” Ah”, pensei comigo. Vez ou outra ouço alguém usar uma expressão a qual eu era acostumada, e estranho. Ou contar uma piada que eu costumava contar e rir, estranho também. Onde foram parar as partes de nós que tínhamos no passado e se perderam com o tempo? A memória que é fraca ou somos nós que não nos esforçamos suficientemente para guardar nossos pedaços favoritos de nós mesmos? Acho que são as duas coisas. Precisamos fazer força e nos lembrar o porque somos o que somos, como chegamos aqui, pelo que passamos e porque devemos nos valorizar. Não podemos esquecer das partes da batalha que doeram e como fizemos para passar por cima disso, nem quem nos ajudou a atravessar a ponte. Devemos recordar as partes ínfimas de nós, que muitas vezes são detalhes, mas acima de tudo, lembremos que de detalhes somos feitos, célula por célula, orgão por orgão, lembrança por lembrança. Então, aquele velho conhecido seu vai te encontrar e vai estranhar aquela piada que era sua cara ter sumido do repertório. Você também vai estranhar, assim como eu estranhei minhas habilidades de costura. Nossa memória é fraca. Mesmo as fortes são fracas. Quando visitei Londres pela primeira vez, decidi que era minha cidade favorita do mundo. Na segunda, me surpreendi ao relembrar várias coisas que não recordava ao mencionar a cidade Inglesa nas minhas lembranças, e me via inconformada. Mas fui, e olhei. Olhei e relembrei, fiz valer o porquê Londres continua sendo minha cidade favorita. Mesma coisa ocorreu quando dia desses, um amigo meu perdeu alguém especial. Eu disse: preste atenção para os valores que ela te passou, e não se esqueça de aplicá-los na sua vida, assim você sempre vai lembrar com carinho dela. Atenção que, com tudo isso, não digo que não vamos evoluir. Você vai mudar sim, mas é importante que carregue com você  aquilo que te faz você, e o que te faz gostar de você. Quando a gente não sabe muito bem do porquê somos apreciáveis, isso pode se perder, então se abrace, se conheça, recupere e mude quando for necessário. Puxe suas lembranças. No fim das contas, entendi o que estava acontecendo… Lembrei vagamente de quando era criança, e fiz força para provar meu talento na costura. Não foi fácil da primeira vez, mas aí descobri que a linha desfiava facilmente e isso a impedia de entrar na agulha. A culpa não era só minha. Nem da agulha. A culpa era da linha. A culpa era da vida. Mas viver é igual a andar de bicicleta, não dizem? A gente pode enferrujar, mas nunca esquece.

* Foto por Malu Lima, em Londres, UK

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