Arquivo do mês: agosto 2014

E o que fica?

A Professora chamou e todos se reuniram em volta de um pequeno ser. Ela disse que iria fazer o protocolo de morte cerebral. Demorei a entender, a me tocar, que aquela pessoa inofensiva, pequena, e com nem um vigésimo de vida vivida tinha o destino traçado a uma ladeira negra. Pelo menos foi o que eu pensei na hora, me desligando dos pormenores que vinham depois…não responsividade, eletroencefalograma, doação de órgãos. Nada passava na minha cabeça. Não sei qual foi minha expressão, sei o quanto marcou em mim. O que fica, afinal? Os olhos ainda estavam lá, e é como se ela ainda lutasse, como se ela ainda nos olhasse e suplicasse uma segunda chance para a vida. Então, no dia seguinte existia ainda a remota possibilidade de um reflexo e uma ínfima possibilidade de luta. A minha resposta veio. O que ficaria afinal? Ficaria a lembrança, ficaria a marca da luta e o passo para a batalha. Ficaria o olhar de súplica e todos aqueles dados após derrotas e também após vitórias. Ficaria o nome impresso em qualquer papel que em um dia qualquer será destruído, mas não apagado. Ficará na história, na literatura, mas sobretudo na história de outras pessoas. Fica pelo mal, e fica mais pelo bem. Pela lealdade de estar do lado dos que amam para o resto de uma vida que, eventualmente, já acabou, mas consegue ser propagada pela imagem refletida na vida dos com quem se conviveu. Por isso fale sobre quem você ama. Mesmo que essa pessoa tenha te abandonado, propague a vida dela. Seja extensão de várias vidas, seja ponte. Propague o ensinamento, olhe nos olhos. Ame de fundo, ame com a alma e não só com os olhos. Ame com os dois, com todas as partes de você. Fale sobre o mundo, mostre sua visão, marque a vida de alguém e o destino de muitos. Faça o bem para você, seja feliz e envolva os outros nisso. Deixe sua imagem pelas gerações, dê as mãos, você não precisa andar sozinho. Você não vai viver melhor assim, nem vai viver mais. Deixe estar, ficar, perpetuar, juntar e ser. Seja você o que é. E o que é, é o que fica. O que fica? As partes de nós que deixamos para as pessoas. E é por isso que eu vou ali, me dividir até onde puder. Até onde eu sei, todas essas células se regeneram, e toda essa alma nasce e levanta quantas vezes forem necessárias, por toda a vida. Para o pequeno ser eu digo que a divisão foi válida, e ainda que tenha ido, não foi. Ela continua aqui, marcada com força, por mais toda uma vida, em nome dela, de mim e de todos, bem vivida.

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Asas

Dia desses me colocaram em uma vírgula da vida a hipótese: ter asas. Dada a tal, perguntaram, e aí, o que você faria se as tivesse? Pergunta um tanto boba, né? Parece coisa de criança discutir o que você faria se pudesse voar, se tivesse um par de asas. Bom, surpreendentemente, ao começar a pensar, não tinha ideia do que faria primeiro. Dissertei bastante. Eloquentemente. Iria primeiro a Londres. Depois tomar café em algum dos milhares de cafés que eu quero conhecer na vida. Visitaria todos de quem sinto saudade, sobrevoaria a cabeça dos outros e escutaria conversas constrangedoras, iria para o topo de uma montanha ficar sozinha e sem celular, e ficaria tirando onda com o mar. Viajaria, viajaria, viajaria, e, nem sei por onde começar! Tive um micro AVC. Fiquei travada, irresponsiva. Não fazia ideia do que queria fazer primeiro. Ele logo notou e respondeu: não sabe do que? Eu disse, não sei o que faria. Se o que? Se pudesse voar. Mas não foi isso o que eu perguntei. Foi sim! Perguntei se você tivesse asas. Então, mas se eu tivesse asas eu poderia voar. Pois bem, o que você faria primeiro era simples, a resposta é simples: voaria.
Surpresa, depreendi duas coisas das quais não tinha me dado conta. A primeira é que se você tem asas, é sua opção voar. Elas não batem sozinhas, nunca baterão. Quem escolhe voar é você, a escolha é sua, faça por você. Dois, tenha ao seu lado pessoas que te estimulem a usar suas asas da melhor forma possível. Escolha aqueles que te deem a mão e te puxem para cima, elevem suas expectativas e te ajudem a superar seus próprios limites, suas próprias barreiras.
Tudo aquilo que te faz ficar em casa, chorando, embaixo do edredom e esperando a vida acontecer é o mesmo aquilo que corta suas asas, pena por pena, te colocando para baixo. Então, não deixa. Nem espera. A vida está ali fora, acontecendo, enquanto você está esperando coisas e pessoas que não vão aparecer e que, se aparecerem, vem com a tesoura mais enferrujada do mundo. Ela corta, infecciona, atrofia e fibrosa suas asas. Não deixa. Acorda. E quando elas chegarem vai ser difícil de encarar, de engolir, de superar, de olhar, de não chorar e reagir? Então, o que você faria se tivesse asas?
Se fosse para te dar um conselho eu te diria: Voa.

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A felicidade do dane-se.

096

Acho que minha vida pode ser divida entre antes de conhecer Bauman e depois dele. Não por um acaso, recentemente me deparei com uma entrevista com ele, e então resolvi voltar a ler alguma coisa. Não obstante, o cara deu um show e sambou na minha cara, detonando com qualquer conceito que eu tinha sobre amor próprio. Explico: a teoria dele é que o amor próprio, genuíno, daquele jeito que gostaríamos que existisse, não existe. É isso aí, vai para o saco. Sabe todo o tempo que você passou tentando ser fiel a você e se dedicando a coisas as quais supostamente te fazem uma pessoa melhor quando você se olha no espelho? Pois bem, você na verdade usou todo esse tempo para conseguir a aprovação do outro. Basicamente, o amor próprio consiste em conseguir o amor do outro. A teoria do danado é que você só se ama quando é amado, e que gostar mais de si implica chegar a uma imagem que o pai, a mãe, o tio, o namorado, o mundo todo aprova. E eu te pergunto, é isso mesmo que você quer para você? As horas de academia são pela endorfina e felicidade extrema ou são para um ideal de beleza? Aquele comportamento polido é porque te faz feliz ser assim ou é porque todos estão vendo? Bom, nesse ponto de reflexão eu primeiro entrei em uma êxtase exasperada pela conclusão louvável. Depois parei de pensar num quase fundir mental e fui ao Starbucks, e como-todo-sábado-de-manhã pedi o bom e velho Mocha com meu bagel de sempre. Pedi o leite desnatado, para a consciência não pesar tanto (e confesso que mais uma vez o negócio do amor próprio ecoou, porquê, Deus, porquê?). Bom, me surpreendi em, ao tirar a tampa para adoçar a bebida, ter notado que tinha chantilly ali. E do que adiantava leite desnatado e chantilly? Era um oxímoro se materializando bem na minha frente. Fiquei inconformada. Pensei em tirar a gordice ali de cima, mas sabe de uma coisa? Não tirei. Gritei dane-se para minha consciência, fechei, fingi que não era comigo e zum, bebi sem pensar duas vezes. O que posso dizer sobre isso hoje? Que Mocha fica bem mais gostoso com chantilly, embora eu vá retificar da próxima vez: leite desnatado e sem chantilly. Acontece que bebendo aquilo, eu fui mais feliz. Me desapegando de uma consciência coletiva e, por vezes, bruta e rude, a coisa foi mais gostosa. Então eu percebi que o Bauman estava mesmo certo. Não se trata do que você faz para se olhar no espelho e se achar mais bonito. Não se trata daquele monte de coisa que empilhamos na gente, na tentativa de ser amado. Se trata do “dane-se”. Dane-se o que os outros pensam, se quiser gritar, grite. Quer ligar, ligue. Quer brigar, briga. Quer atravessar a paulista cantando? Atravessa. Vão te achar louco? Vão. E daí? Dane-se. Permita-se. Não precisa subir na mesa da empresa e rebolar até o chão, ser demitido ou se divorciar porque resolveu sumir por um mês já que estava cansado da vida. Não é nada disso. Mas se permita momentos de você. Permita-se não ligar muito. Ache o seu lugar, onde você pode ser você sem pensar ou se preocupar sobre o que os outros estão pensando. Não tire o chantilly da bebida se você não quer, e dane-se se a magrela orgânica do lado te olhar com cara feia por isso. Faça o que te faz sentir bem. Esteja com quem te aceita como você é. Ame a pessoa com quem você consegue ser você mesmo, sem forçar um comportamento artificial. Case com quem você consegue se divertir e confiar. Se trata de saber a ocasião e ter o controle sobre o momento certo de perder o controle. Uma amiga um dia me disse “se você tirar o mundo das costas, ele não vai acabar”. E não acabou. Sabe qual é a do amor próprio? O dane-se, seja você para você. Saiba quem você é, domine a propriocepção e abrace sua causa. Se mostre para quem você quer se mostrar, apenas. Vista vermelho, porque se você for baleado, ninguém vai descobrir. O sangue vai ficar disfarçado, e isso deixa as coisas mais fáceis, já que quem importa vai estar ali e vai saber o porquê de você estar usando vermelho. E hoje, se me perguntarem se eu sou feliz eu vou responder: Até que sou. Sou feliz socialmente.

* Foto por Malu Lima, Estocolmo, Suécia

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